A Diva Dilac – A vida de Vânia Dilac por Vitor Prata

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Era um habitual domingo em Moçambique. Os raios de Sol faziam despertar Quelimane e os seus habitantes. Um obrigado ao novo dia que começara e mangas arregaçadas para trabalhar a terra. A colheita do chá era a prática agrícola predileta e sustentava muitas famílias que dependiam dos frutos que a terra dava. O astro maior não veio diferente que os outros dias e pôs-se na hora planeada pelos astros, como de costume. Nada de invulgar naquela terra moçambicana, para além de ter nascido mais um habitante. Naquele ameno domingo de dezembro de 1980 nasceu Vânia Câmara.

Diva Dilac - Vânia Dilac - The Voice Portugal

Com três anos e com um quarto da sua altura física de agora, Vânia veio para São Miguel com os seus pais e os seus três irmãos. Era mais uma família africana – como outras tantas no mundo – de malas juntas ao corpo e um coração cheio de esperança e melancolia.

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Como uma flor que se embeleza ao crescer, a Vânia também passou por este processo de fotossíntese. O chapéu de lado e sapatilhas meio rotas das brincadeiras de infância deram lugar ao salto alto vistoso e as muitas tranças africanas no seu cabelo. Brincava na rua até ao trinar das trindades ou quando alguém soltava um grito ruidoso, ordenando o seu regresso a casa. Este grito soava-lhe familiar: era a mãe. A mãe que lhe embalava nos braços, ao som do seu murmúrio melódico, algumas vezes improvisado. A mãe que lhe disse que os dias em Moçambique são maiores e não têm 24 horas.

A Vânia foi buscar Dilac ao sobrenome do avô e muitas vezes recorda – de brilhozinho nos olhos – o pai a tocar viola de forma apaixonante. Era sempre um motivo de festa e convívio: aliás, que poderíamos esperar das nossas famílias? Ainda adolescente juntou-se ao grupo coral da Igreja Evangélica e, logo depois, criou um grupo gospel com os seus amiguinhos com quem passara horas a fio. A paixão pelo canto fê-la sentir que tinha nascido para isso. Outro clichê, bem sei. Estamos cansados de clichês, mas não fossem estas frases repetidas de forma exaustiva, lições de alguém que viveu e decidiu palavrear um sentimento, um momento.

“Gostava de ser professora de Educação Física” – dizia Vânia com toda a certeza. Cativava-lhe a forma como os corpos se mexiam e o bem-estar que a prática de exercício físico provocava nas pessoas. Não ficou por aí e sonhou mais alto. A menina maria-rapaz ansiava mexer com algo maior: o âmago das pessoas. Era a alma das pessoas que queria tocar sem ter que se aproximar. E como? Pela sua voz. Queria tocar no âmago do Ser humano com a sua voz.

Dedicou-se à música de corpo e alma. Ouviu e contemplou a Etta James. Sonhava ser como ela: uma cantora de blues, jazz, R&B e gospel. Inspirar-se na cantora californiana era fácil, pois ambas gostavam do mesmo estilo musical e partilhavam o facto de terem nascido no grande continente africano. Os pósteres da Tina Turner na parede do seu quarto eram comidos pela humidade e pelo passar do tempo. Nem isso foi capaz de apagar o fascínio que partilhava por esta artista. Vânia lançava ao divino a vontade de ter uma carreira de artista com base no que a diva ensinara: Turner sugeria-lhe que tivesse sempre muito gosto em ser mulher e, acima de tudo, mostra que a mulher pode ser poderosa – não estando apenas cingida aos sombrios autoritarismos masculinos traçados na história social do mundo. Assim foi: os cabelos compridos atirados para trás das costas e de lápis e papel na mão.

Surgiram alguns rabiscos nas folhas machucadas, outras um tanto ou quanto molhadas, como reflexo da sua entrega e alma na composição. A Vânia com a sua viola conseguia criar músicas que podiam ser consideradas como hinos mundiais do amor, da paz, da família, da tristeza, da amizade e da Vida. Foram os zigue-zagues das subidas e descidas que a sua montanha-russa – a que muitos chamam de Vida – que lhe serviram de pano de fundo para a criação das mais lindas canções que guarda no seu coração. Surge a moça meio-negra no palco, canta, agradece e desce do palco. Repetiu este processo vezes sem conta. Quem já teve o privilégio de assistir aos seus espetáculos, pode comprovar. As subidas ao palco somam às centenas. Mudam-se as formas, as estruturas e as cores dos palcos, mas a base é a mesma: o seu palco é como o céu azul de São Miguel. Num vôo ligeiro e seguro, a Vânia passeia no seu planar tão belo sobre uma floresta de pessoas diferentes mas unidas pela mesma vontade: a vontade de ouvir o seu cantar. Lá vem Vânia a cantar, encantando e tocando a todos pela sua alegria e boas vibrações. “É uma coisa típica dos artistas africanos” – justifica a Vânia a quem lhe pergunta como consegue cativar tanto os espetadores.

Passaram seis anos desde que se dedicou inteiramente à música e aos espetáculos. Nunca tinha pensado ser uma fada-madrinha, mas sempre que fecha o estojo da maquilhagem no fim de cada espetáculo, a Vânia espera ansiosamente por uma nova oportunidade de trazer brilho ao coração dos micaelenses.

Vânia Dilac - The Voice Portugal - Açores

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A menina moçambicana fez da maior ilha açoriana o seu palco. Mesmo que seja no improviso de um jantar com amigos, ela sabe ouvir e, melhor ainda, cantar. O público, embebido quer pelo tinto do Pico, como pela sua voz forte como vulcão, aprecia – em silêncio – o canto da diva luso-moçambicana. Imagino eu, do meu pacato ser micaelense, soar a algo semelhante ao canto das ninfas de Camões.

Como todo o conto de fadas tem uma parte triste, a história de Vânia ganha uma cor mais amargurada quando o seu grande olhar mira o chão e os seus ombros levantam-se. A pena invade-lhe o coração quando vê a exploração dos músicos, por parte de muitos contratantes. Quando estamos doentes e precisamos do colo da nossa mãe, perdemos todo o espetáculo maravilhoso que a Mãe Natureza nos preparou: a água que corre doce e fresca na ribeira, o canto das aves e o acordar dos girassóis em cada amanhecer. A Vânia sente-se similar quando vê o panorama musical regional e desabafa com a letra de criança no seu singelo diário: “estamos a perder grandes músicas e músicos, grandes poetas e artistas a cada dia que passa”. Mas é uma ideia que quer deixar de escrever ou, até mesmo, de pensar. A Vânia acredita que é possível dar a volta, mas de boas intenções está o Inferno cheio.

Ainda no amanhecer de hoje, a Vânia sente a batucada moçambicana que acompanha a batida do seu coração. É o apelo. É o apelo às suas raízes africanas. Não vive em contradição, mas sim em harmonia entre a sensualidade africana e a melancolia da ilha de bruma que abraçou. Num compasso descompassado, eis que ela acorda com o verdejante cenário do ilhéu ao seu redor. Quer nas melodias do cancioneiro regional, quer pelas músicas dos ritmos quentes africanos, a Vânia transformou-se na perfeita fusão de uma espécie de chamateia moçambicana.

Autor: Vitor Prata

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